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Cartas de Camila | Bianca

Deisy Soares!

Camila tinha apenas 7 anos de idade quando sua mãe resolveu ir embora para a capital em busca de uma vida melhor para sua filha. A mãe de Camila, Dona Joana, sonhava em abrir um Café do outro lado da rua de sua casa. Imaginava o dia em que estaria preparando seus sonhos – ela adorava fazer sonhos de nata – enquanto sua filha a observava cuidadosamente, do balanço de madeira instalado no jardim.

Dona Joana foi, mas nunca mais voltou. Camila foi criada por sua avó materna, não chegou a conhecer seu pai, e estava sempre rodeada por tias. Camila vivia uma vida tranquila, mas sem uma mãe ou sonhos de nata.

Camila se sentia sozinha. Sua avó, já muito doente, não era a companhia mais estimulante. Suas tias fofoqueiras passavam o dia entre opiniões e julgamentos alheios. No meio de tantas pessoas e tantas lamúrias, ela não tinha ninguém que a escutasse. Assim então, Camila costumava ficar em seu quarto, escrevendo suas cartas. As cartas davam vozes aos seus sentimentos e aliviavam as dores do seu coração.

O seu tempo era dedicado aos outros, Camila não tinha vaidade, não sabia o que era cuidar de si. Tinha dores no peito, tinha um coração grande demais, tão grande que um dia ele parou de bater.

Dois anos se passaram desde a morte prematura da menina Camila, e os seus familiares ainda não conseguiam olhar para aquelas paredes do seu antigo quarto sem cair em desespero. Isso deixava tia Clarice incomodada e agitada. Foi então que em um dia morno de domingo ela resolveu fazer uma faxina naquele quarto.

Enquanto varria embaixo da cama e cantava uma melodia animada, Tia Clarice encontrou um pequeno baú, sem hesitar, abriu sem cuidado, encontrando cinco envelopes amassados. Ficou curiosa, pegou os envelopes, escolheu um aleatoriamente. Abriu.

Era uma carta de Camila para sua amiga mais próxima, Bianca.
Bianca era uma menina que tentava ser uma boa amiga, mas na maioria do  tempo esquecia de ao menos perguntar se Camila havia tido um bom dia.

“Oi Bianca,

Estava pensando nos últimos tempos, mastigando o quanto nós nos afastamos uma da outra, e sentindo uma nostalgia dolorida.

Sabe, lembro-me dos seus olhos perdidos e sinceros. Quando te encontrei, apavorada pelos corredores da escola. Você não sabia muito sobre o mundo e suas dores, era uma menina docemente ingênua.

Me apaixonei pela sua vontade em dedicar-se a ajudar outras pessoas, me impressionei com o nossa afinidade na busca pela melhor forma de ser indiferente às coisas negativas da vida. Não existia egoísmo, não existia orgulho, só existia garra. Éramos unidas.

Não sei o que aconteceu, ou em que momento eu te perdi, nem por que nós nos afastamos, mas sinto que se eu soubesse toda a decepção que ia acompanhar a nossa amizade, realmente não sei se eu teria te ajudado e feito tudo de novo.

Te amei, te amparei, até te ajudei a achar o seu caminho. Já fui como mãe, peguei na sua mão, te ensinei a dar um passo de cada vez, te ensinei a andar. Talvez seja simples perdoar pessoas “pequenas”, mas não sei se é possível perdoar alguém que já foi tão grande em minha vida.

Como Judas, a sua traição foi silenciosa, o punhal era afiado, matador, veio em golpes rápidos, acertando direto a minha jugular. Senti um gosto amargo, gosto de sangue que escorre no canto da boca e explode enquanto o coração pulsa rumo a um enfarto agudo. A morte do amor que estava ali. Um tipo de decepção, que deixa a cabeça tonta e sem rumo, arrancando o chão que estava sempre ali, firme, forte, intocável.

Eu já disse coisas desagradáveis sobre as suas atitudes, mas nunca te desejei nenhum mal. Infelizmente, pelas minhas costas, você plantou coisas ruins sobre mim para outras pessoas e não se importou com as minhas necessidades, querendo a minha desgraça, desejando para mim, coisas que eu jamais desejaria para você.

Será que fui eu que errei e não vi? Será que fui eu quem magoou e não notei? Será que fomos nós que nos esquecemos de o que é uma boa amizade?

Pensando em tudo isso chego a me sentir com o peito apertado, culpado, sem saber o que dizer. Será que fui eu ou será que foi você? No meio do caminho talvez fossemos nós que nos silenciamos diante de um momento de orgulho bobo, sem tentar parar para resolver isso de uma forma sensata. Demos brechas e ouvidos para as nossas inseguranças, deixando mesquinharias roerem o nosso laço.

Só espero que nossas dores passem, e passem logo. Que elas cicatrizem e se tornem marcas bonitas como as dos heróis de guerra. Pois se for para lutar, é melhor que o rumo seja a vitória.

Com saudades da minha querida Bianca.

Camila”

Tia Clarice fechou os olhos, sofrendo com a saudade e vontade de abraçar sua pequena sobrinha. Ninguém sabia dos sentimentos de Camila, ninguém nunca lembrou de perguntar sobre sua vida, ou sobre os seus dias.

Camila nunca disse para Bianca o que sentia, mas sorria, nas poucas vezes em que as duas se encontravam.

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Ao diabo um segundo na Terra

por Murilo

Tac Tic. Voltei no disco do tempo. E tal qual em disco da Xuxa, vi os sinais do tinhoso.

O respeitoso senhor fitar os seios da mãe amamentando no ônibus, desejando estar no lugar do bebê. A moça conferir, de soslaio, o volume do melhor amigo de seu namorado. O irmão mais velho passar a perna no caçula. O caçula dedurar para os pais, aumentando a história toda.  O tio olhar para a sobrinha que já pegou no colo há 15 anos, com vontade de pegá-la novamente. A menina trendsetter espalhar a novidade do falecimento de sua amiga, e ficar secretamente feliz por ter sido uma das primeiras a saber. O pai duvidar das capacidades de sua filha. O psiquiatra zombar, internamente, das lamúrias de seu paciente. O funcionário desejar a morte do chefe. O chefe, no carro, desejar a morte do mendigo na rua. O gordo de dieta não resistir a um bolinho. O padre olhar, incrédulo, para a hóstia em suas mãos. O pastor olhar, crédulo, para o dinheiro nas suas. O garçom cuspir no sanduíche. Boça se vingar ao seu modo. O jovem, nem tão jovem, falsificar sua carteirinha de estudante. A casa de shows cobrar o dobro para compensar o prejuízo com essas carteirinhas. A garota invejar o corpo, a roupa, o trabalho e a vida da outra. O caipira fitar a égua e planejar o barranqueio. O policial descer o sarrafo no manifestante. O manifestante quebrar tudo que pode. O opressor contar uma piada racista. O oprimido gargalhar. A velha funcionária pública jogar paciência enquanto se acaba a paciência na fila de atendimento. O velho funcionário ficar até mais tarde no trabalho para acessar pornografia. O rapaz tirar a aliança antes de entrar na balada. O garoto ignorar o post que fala sobre as crianças da África e curtir um meme qualquer. A garota engajada que postou sobre crianças na África desligar o Macbook e pega sua bolsa Louis Vuitton para ir ao shopping. O chefe defender o talento da estagiária, mesmo que só interessado em sua bunda. E todos os funcionários saberem disso, e todos compreenderem.

Um segundo de podridão humana. Um segundo como outro qualquer.

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O melhor lugar do mundo é dentro de uma mulher

Por toda vida escolhi minhas mulheres sabendo que algo tão efêmero quanto a beleza não deveria ser a primeira coisa a ser desejada. Sempre preferi as inteligentes, carinhosas, engraçadas, às lindas. Mas não naquele 19 de dezembro, quando saí de casa pensando que pouco importaria se a dama envelhecesse feia, enrugada e sofrendo a gravidade empurrando-a para o centro da terra, pois muito antes disso meu amor fugaz já teria desaparecido no mar das paixões afogadas, e eu mal poderia me lembrar do rosto ou da cor daqueles olhos que haveriam de se fechar enquanto os lábios me beijassem como se a vida toda dependesse disso. Aquela noite eu teria a mulher mais linda do mundo, e foi assim que conheci Diana.

A noite deveria estar quente, como geralmente é naquela época do ano, mas tínhamos uma chuva fina caindo do lado de fora, o que fazia com que as moças entrassem na festa enxugando suas grossas capas de chuva e corressem para o banheiro conferir se os penteados continuavam inteiros.  Foi seguindo este mesmo roteiro que vi minha Diana entrar pela porta, vestida de sua elegância com passos suaves, caminhando em direção ao lavatório sem olhar para os lados, ou sequer imaginando que meus olhos a seguiam entorpecidos, enquanto eu tentava lembrar se em algum momento já havia encontrado outra menina que iluminasse meu ser daquela forma, e a conclusão foi que não. Nunca encontrara, e nem encontraria depois daquele dia, quando Diana me petrificou de desejo e intenções. Não foi amor, como nunca poderia amar alguém apenas pela sua forma física. Era mais forte do que isso. Era um desejo que crescia fazendo todo o meu corpo latejar. Eu desejava conhecê-la, ouvir sua voz, sentir seu perfume, tocar seus dedos finos de unhas claras, beijar sua pele branca, saber onde estudava, qual seria sua profissão, seu disco preferido, o que achava do comunismo, e até mesmo o nome de sua cachorrinha. Era, no fundo, um instinto de auto-preservação que desejava conseguir amá-la acima de tudo, evitando toda a frustração com outras mulheres que haveriam de passar pela minha vida e seriam reduzidas a imagens imperfeitas de Diana.

Quando enfim consegui levá-la até o centro da sala para envolver seu quadril em minhas mãos e dançar sentindo o seu coração disparado tanto quanto o meu, suas mãos geladas e o perfume que nunca esqueci, sabia que aqueles seriam os últimos lábios que eu desejaria em toda minha vida. Ela tremia enquanto eu beijava seu pescoço lentamente e voltava para sua boca com desejo vibrante, fazendo-a ser tomada por uma expressão sonhadora e adorável.

Quatro dias depois, exaustos de paixão, lutávamos para deixar a quitinete que nos abrigava desde aquela noite, para voltar à vida infeliz e monocromática que nos aguardava do lado de fora. Resistindo ao impulso de arrastá-la para mais várias semanas esparramada sobre a cama, compreendi que os bebês levam 9 meses para nascer porque não há lugar melhor no mundo para se estar, senão dentro de uma mulher, mas Diana não era minha, e nem seria justo que fosse. Diana era patrimônio do mundo e deveria ser livre, andando pelas ruas alegrando cada pessoa que a encontrasse e fosse contagiada pela sua presença, e ai que sorte de quem recebesse ao menos um olhar seu. Mas cada uma dessas pessoas iria para suas casas e fantasiaria uma história de amor com a mulher mais linda do mundo. Histórias que durariam dias, semanas, meses ou anos, mas nenhuma delas poderia ser eterna porque Diana era patrimônio do mundo e deveria ser livre, para que outra pessoa pudesse encontrá-la e dar um pouco de sentido à sua existência. Não prendam a minha Diana. Ela deve ser livre.

André Petrini.

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Dórian

por Murilo

Não foi quando papai morreu que eu descobri que ninguém escapa da morte. Foi algumas semanas depois, quando morreu Dórian, meu peixinho imortal.

Ganhei Dórian de meu pai quando tinha quatro anos. “É um peixinho imortal, filha”, disse. O nome foi ele mesmo quem deu. Falou que era nome de um personagem de livro famoso, belo e imortal como o peixinho. De lá para cá, não posso dizer que tive momentos extraordinários com Dórian. Apesar de bonito, inteiro vermelho e com longas barbatanas, não deixava de ser um peixe, que nadava e comia e só. No entanto, posso dizer que ele sempre esteve lá.

Eu entrei para a primeira série, fiz amigas, odiei garotos, cresci, entrei para a quinta série, comecei a gostar de garotos, fiz inimigas, dei meu primeiro beijo, fui ao meu primeiro show, tive meu primeiro namorado, voltei a odiar alguns garotos, fui para a Disney, me formei depois da oitava série, e Dórian ainda estava lá. Quando eu contava às pessoas, elas não acreditavam. Um peixe ornamental daquela espécie vive em média três anos e pode chegar a, no máximo, oito, se bem cuidado. O meu já tinha mais de dez, e eu nem cuidava assim tão bem dele. “Ele deve ser mesmo imortal” eu pensava.

Dois anos depois, papai fez uma cirurgia complicada no coração e não sobreviveu. Por vários dias eu chorei e, depois disso, para que não cessasse meu pranto, foi Dórian que, em um dia frio, apareceu boiando no aquário. Só então minha mãe me contou toda a verdade.

Não havia existido apenas um Dórian, mas vários. Meu pai trocava o peixinho por outro muito parecido cada vez que parecia abatido, ou se simplesmente já tivesse vários meses de vida. Uma vez, ela contou, o peixe morreu de repente e papai saiu na madrugada atrás de outro, para que eu o encontrasse vívido e exuberante pela manhã. Era assim que ele cumpria o que havia dito, era assim que fazia de Dórian imortal.

Nos anos seguintes, não estava lá meu pai, mas estavam alguns homens tentando se passar por ele. Não foram poucos os namorados que minha mãe, bonita como era, trouxe para casa. Marcos, Fabrício, Daniel, eu nem me lembro.

O tempo vagou. Tomei meu primeiro porre, perdi a virgindade, comecei a fumar, passei no vestibular, beijei uma menina na faculdade, comecei a trabalhar, saí de casa, parei de fumar, me formei. E quem estava lá eram os namorados da minha mãe, constantemente substituídos, sempre gentis, querendo me agradar.

Hoje penso que seria melhor se ela tivesse continuado a trocar apenas o peixinho.

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Gente de bem não explica tatuagem

Toda festa tem suas peculiaridades.

Nessa, os presentes pegam os telefones dos bolsos e das bolsas para falar com gente que não está lá, para twittar sobre cada tópico discutido em tempo real, para atualizar seus status no facebook ou para usar outras redes sociais. Muita previsibilidade e elaborações banais sobre tudo e nada, como esta anterior, aliás. No salão enorme, mas pequeno demais para tanta gente que, ao menos autodeclaradamente, brilha, admitem inconscientemente que prefeririam outras companhias. Pelo menos neste momento, ou em todos os outros que ocorram dentro dessa noite tão pobre de emoções.

As mulheres e os homens são bonitos, ou estão arrumados, o que costuma ser mais ou menos a mesma coisa nesse tipo de contexto.

Representantes do empresariado local e dos poderes municipal, estadual e federal fazem discursos mais longos que os temas merecem. Mas disso eles não podem ser culpados, porque os discursos são sempre assim. São palavras e palavras e palavras e sorrisos e aplausos protocolares que parecem não ter fim e que conseguem irritar, mesmo que em pequena escala, 298 pessoas que os assistem (dentre um número total de 316 espectadores). Os discursadores no entanto acham que estão fazendo um trabalho agradável, mas disso também não podem ser culpados, já que a autocrítica nunca é a qualidade mais presente ou evidente no comportamento de quem quer que seja.

Definição boba da ideia de guerra contra o ego: é mais comum declarar que deflagrar.

Esta e outras frases feitas de palavras ao vento certamente continuarão vindo, carregando pesadamente conceitos batidos, verdadeiros ou não, mas que continuam a ganhar resistência com o tempo, curtidos em seus próprios usos irrestritos.

Já na porta, uma dupla de tequileiros faz um show pirotécnico para servir uma bebida que é etilicamente próxima do conhaque, do uísque, da vodka e da cachaça, mas que é apresentada como uma porta de entrada a um terreno de diversão descontrolada, passional, intensa. As razões para que isso aconteça são tão obscuras quanto os filmes de cinema e peças de propaganda que inicialmente começaram a difundir a ideia. Eles, os tequileiros, são pagos para emular o México que é visto nos filmes, que por sua vez emula o México da literatura criada por quem não vive no país, que por sua vez tem pouco ou nada a ver com o México de verdade. Não que seja necessário incutir qualquer suposta autenticidade num show assim, visto que a fascinação com o fogo e a atenção que gritos chamam jamais serão temas exclusivamente mexicanos.

Realidade, ou: uma construção de cuja origem ninguém lembra por razões mais óbvias que as culpas e os arrependimentos.

Pastiche torto. Um baile de máscaras sem música ou dança. Natimorto, então.

Muitos andam com um certo ar blasè pelo evento, apesar de estarem bastante interessados em fazer novos amigos, desde que estes sejam influentes em certos círculos da cidade.

Agora, os discursos acabaram, e iniciou-se o aproveitamento dos pratos e bebidas da noite. Esta degustação é o motivo da presença de quase todos, com exceção de um dos membros do poder municipal, que vê na parceria com os empresários que aqui estão uma plataforma eleitoral interessante e proveitosa o bastante para tirar-lhe de casa nessa data, que coincide com o aniversário do filho mais novo dele.

Daquele jeito:

ninguém é perfeito.

Ouve-se ao longe uma moça vociferando contra a configuração da sociedade, e contra a falta de oportunidades e condições iguais para que todas as pessoas possam se desenvolver bem e através dos próprios esforços. Ela acabou de ser filmada para aparecer na coluna social de um programa local de televisão, destes que cobrem este tipo de evento. Ela descobriu hoje que passará a ganhar um salário maior no emprego devido a uma promoção. A hipocrisia dos outros a irrita, só um pouco menos que a evidente falta de alguém qualificado para discutir o tema agora. Dessa forma, e a despeito de já passar da meia noite, liga para uma grande amiga, que vem a ser também sua manicure, toda vez que a agenda de ambas permite. E a agenda de ambas sempre permite, toda quinta-feira às 19h30, com raras exceções, a R$ 15,00 a sessão.

Serviçais servem serviçais que fingem não sê-los. Os serviçais que servem não conseguiriam garantir a estranheza dessa relação por causa da alta quantidade de trabalho para realizar. (A quantidade de atividades forçadas que alguém realiza é sempre inversamente proporcional ao tempo que se tem para refletir sobre a natureza delas, seja quem as pratica quem for). Mas os serviçais que estão sendo servidos sim, sabem que têm a quem se reportar em algum lugar, mas não gostam de pensar nisso. Em alguma instância, nem podem, pelo bem da continuidade de seus projetos pessoais de felicidade.

Um dos destaques positivos da noite é o sabor de um dos pratos. Trata-se de batata frita, mas com um molho de nome estrangeiro que ninguém conhece mas não tem desenvoltura para admitir. Muitos têm uma opinião bastante elaborada sobre a qualidade e o sabor deste molho, comparando-o ao original, (diz-se que) criado e servido num vilarejo na Itália. Lá, inclusive, ele parece ter algo a mais, talvez pela qualidade do terreno e dos tomates que são cultivados na região.

E a volta às obsessões, sempre as mesmas:

a penúltima linha, agitada.

A última linha, serena.

Marco Antonio Santos.

A parte um tem pouco a ver com esta, mas de qualquer forma está aqui: Gente de bem não fala esperanto

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Gente de bem não fala esperanto

Somos o fim da festa e, mais cedo, a alma dela. Somos a garça, o tigre, a serpente e as estrelas. A angústia infindável, o castelo de areia que desaba, a bolsa esquecida na cadeira do bar e a mochila no canto da balada. Somos a caminhada para dentro de um livro / dentro da noite veloz; o posto de gasolina que serve para abastecer veículos de bêbados e as contas bancárias dos frentistas que ganham o benefício do adicional noturno, ainda que este, somado ao salário de sempre, não supra todas as necessidades deles e de suas famílias. Somos a região metropolitana da cidade que nada fala, mas que se falasse pretender-se-ia grande.

Somos donos de cães e cães sem dono. Os jogos pobres de palavras. Até as palavras, sempre pobres. As repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições. E o que mais?

Os buracos negros. A terra e a tristeza e os sorrisos e as lágrimas negras (que) caem / saem / doem. Nós somos a rua e seus elos, as esquinas. Nos melhores dias somos o amanhecer. Nos piores, a noite em si, e em ré, fá, e notas de cítaras e harpas sem cordas. Somos as versões techno dos hits radiofônicos do momento, que serão tocados por 98% dos DJ’s na próxima temporada de formaturas, entre “YMCA” do Village People, “We Are The Champions” do Queen, “I’ve Got a Feeling” do Black Eyed Peas e outras canções menos emblemáticas. Somos as meninas dramatizando a letra de “Like a Virgin” da Madonna em algum momento de alguma dessas festas, na altura em que as garrafas de bebidas estão pela metade em quase todas as mesas do salão. Somos os meninos vomitando no banheiro ou fora dele porque beberam demais.

O bumbo, a caixa e qualquer som que eles produzam juntos.

Somos os três seriados de televisão em voga no momento, e todas as relações sociais que eles geram ou alimentam. Os interesses. A conta de água e o aluguel atrasado, o amigo que dorme bem no quarto ao lado, a dupla que anda pelas ruas falando de desembargadores num tom de voz presunçoso e engraçado. Os minutos gastos esperando atendimento da companhia telefônica, ao telefone, aliás. A lâmpada que economiza energia. O refrigerante que é sinônimo de alegria, quando não de felicidade. A felicidade (que não existe). O dedo médio (sempre em riste).

Somos o conhecimento ocidental – que não passa de uma rua sem saída – e o conhecimento oriental – ou: uma viela mal iluminada. Os conceitos vazios que não precedem explicações. A aula-show do cursinho pré-vestibular de algum endinheirado que acredita em perspectivas, e o mochilão pelo exterior que, tomara, alivie-o daquele tipo de culpa que só gente rica sente e jamais admite. Somos os atos dessas pessoas, sobretudo quando elas não conseguem expressar em palavras o porque de fazer o que fazem, seja lá o que for.

Nós somos os ricos e os pobres. Os diretores do banco e os ladrões que estouram o caixa eletrônico e são flagrados de máscara e jaquetas pesadas pela câmera de segurança. Uma dessas jaquetas em alguma lata de lixo cinco minutos depois do registro dessas imagens. A mãe de um dos ladrões perguntando onde está a jaqueta que ela deu de presente para ele.

A saudade e a consciência, que apenas tenta impedir os desavisados de sentir saudade de quem não merece, ou merece, ou… (somos até este julgamento).

A raiva que passa e a raiva que fica. A indiferença, o desprezo, a pachorra, o pastiche.

A derrapada da moto, o capacete do motoboy, a pizza cuja entrega atrasou, o cuspe do pizzaiolo. A fanfarra, o som, o chapéu panamá da turista, a guitarra nova, o mal estar na cultura e fora dela, os hotéis, motéis, quartéis, generais, viscondes, brigadeiros, beijinhos, marechais e decibeis.

A memória. A ultradocumentação das banalidades e a satisfação dos egos dos que praticam esta atitude em nome da exposição da própria (sic) subjetividade.

Os sentidos que guiam pessoas para o caminho das ilusões. A respiração de alguém a quem se queira bem, vivida durante um abraço demorado. Alguém que você ama e alguém que esta pessoa ama mais que a você, que não merece amor. Somos tudo o que amamos e deixamos para trás.

Tanto faz. E muito mais. O brilho do sol. O fundo do mar. O horizonte misterioso. O pote de ouro no fim do arco-íris. O fim do mundo. O homem bem sucedido. A mulher forte. Todos os jovens cheios de planos e potencialidades. As pessoas andando no shopping. As vidas tristes. O silêncio do suicida. A calada da noite. As horas gastas olhando para o teto. Isso tudo mais todas as outras imagens comuns, sempre evitáveis mas raramente evitadas.

Os discursos empolados.

A penúltima linha, cansada.

A última linha, resoluta.

Marco Antonio Santos

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Fraturas

por Murilo

Desculpe-me, Cidinha, por quebrar a sua bacia. Eu espero sinceramente que a senhora se recupere logo da fratura, mas por enquanto tudo que posso fazer é pedir perdão. Talvez você, aí com o quadril todo engessado, acredite que foi um acidente (como aquela vez em que a Paulinha quebrou o braço). Afinal, escorregões acontecem, não é mesmo? Mas a verdade é que o chão da área de serviço estava muito liso naquele dia, mais do que o normal, e foi por isso que você caiu. E sabe, dona Cidinha, o chão não estaria tão liso se não fosse pelo lubrificante WD-40 que eu passei ali na noite anterior.

Calma, Cidinha, não foi nada premeditado, sabe. Com tantos anos de seu bom serviço, por que eu haveria de tramar tal armadilha para a senhora? Não, tudo não passou de um infortúnio, as coisas foram acontecendo. Mas você deve estar se perguntando por que diabos alguém passaria WD-40 no chão. Bem, dona Cidinha, a culpa não foi minha, e sim de uma barata. Isso mesmo, uma maldita barata que apareceu ali na lavanderia naquela noite.

O bicho me provocou, zanzando entre os armários e eletrodomésticos, furtivo em cada quina (e isso me lembra de como foi engraçada aquela vez que eu estava com a Paulinha e ela viu uma barata, mas essa é outra historia). Enfim, para matar o inseto, ocorreu-me pegar o inseticida mais próximo. Sem titubear eu peguei a lata e jorrei o aerossol por tudo. Só quando vi que a barata não morria, é que percebi que o spray não era inseticida coisa nenhuma, mas sim o fatídico lubrificante. Perdão, Cidinha, eu realmente me confundi.

Fosse eu um personagem da Clarice Lispector (que, aliás, a Paulinha tanto gostava), escreveria um livro inteiro sobre minhas introspecções ao matar a barata. Mas não. Eu sou bem menos interessante. A minha única epifania foi perceber que lambuzar o chão com lubrificante foi uma péssima ideia, e a única coisa que consegui escrever foi essa carta de retratação.

A senhora também deve estar se perguntando que tipo de idiota confunde uma lata de inseticida com uma de WD-40. Bem, acontece que eu estava bêbado. Isso mesmo, completamente embriagado. No estado em que eu cheguei em casa, Cidinha, eu não conseguiria diferenciar uma laranja de um limão, não conseguiria diferenciar uma privada de um bidê, e provavelmente já havia demorado vários minutos para conseguir diferenciar a chave do portão da chave da porta (sem falar das chaves do apê da Paulinha, que ainda guardo não sei por que). Enfim, fosse um desodorante ou um laquê de vovozinha, eu teria feito o mesmo, mas infelizmente a primeira lata que encontrei foi de um lubrificante. Bêbado é mesmo uma desgraça. No fim das contas, não matei a barata, mas quase matei a senhora no dia seguinte.

Como eu disse, dona Cidinha, as coisas foram acontecendo. Não é muito usual que eu chegue em casa tão regado de cachaça, sabe, mas é que aquele dia havia sido difícil para mim. Eu tive que beber muito para, como se diz, afogar as mágoas. A realidade às vezes é dura demais, mais dura que o piso da área de serviço.

Acontece que naquele dia eu havia encontrado a Paulinha, lembra dela? Eu ficaria muito feliz em revê-la e toda essa confusão teria sido evitada, se não fosse a maneira que a vi. Ela estava nos braços de outro cara, Cidinha. Disse que era seu mais novo namorado, e já lhe chamava demeu amor”.

Cidinha, desculpe-me por quebrar a sua bacia. Mas, cá entre nós, isso tem conserto e logo a senhora se recupera. Sabe, difícil mesmo vai ser consertar essa outra coisa quebrada aqui dentro de mim.

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Diagnósticos flutuantes

por Rafael

Meningioma. Este era o nome do tumor que lhe explodiria a cabeça dentro de dois meses, com sorte três. As convulsões, que eram esporádicas e inexplicáveis até então, passariam a ser a rotina que lhe acompanharia até que definhasse.

Em termos técnicos foi algo em torno disso que Pérsio ouviu de seu médico no final da manhã de hoje, mas tudo poderia se resumir a uma simples sentença de morte. Pela primeira vez Pérsio a encarou como certa e não como uma solitária possibilidade.

Ainda no consultório disse que estava tudo bem, que já esperava pelo pior, que faria o tratamento necessário e cuidaria do resto de sua vida. Pegou a lista de recomendações e os próximos passos para iniciar suas terapias e voltaria para casa.

Na rua, nada viu. Apenas pensava que finalmente havia chegado a hora de colocar em prática os planos que executaria algum dia. No ponto de ônibus ignorou a presença de todos, inclusive de vizinhos seus, mas sem maldade, apenas porque agora não poderia desperdiçar suas atitudes com protocolos.

Meia hora depois o ônibus passou (eles sempre demoram aos sábados, você nunca acerta o horário em que eles passam).

Com o ônibus cheio de lugares vazios, Pérsio optou por um banco acompanhado por outro, também vazio, como forma de possibilitar ao destino a chance de colocar uma pessoa ao seu lado.

Enquanto isso não acontecia, tirou sua caderneta do bolso e, com a inseparável caneta de tinta verde, começou a escrever, como maneira de sentir algo além da superfície amortecida em que flutuava.

Escreveu cerca de duas mil letras. A palavra injustiça apareceu uma vez, mas não relacionada ao seu tumor, que foi mencionado treze vezes naquelas linhas verdes, mas nenhuma de maneira negativa. Já a palavra carinho foi desenhada com desdém vinte e sete vezes, relacionada a oito nomes. Elian, Léa e Carlo foram os que mais receberam este sentimento. Oito, seis e seis, respectivamente. Além de carinho, Léa foi a que mais apareceu naquela espécie de inventário metafísico. Na última menção, Pérsio admitia que estava errado quando dizia que tudo o que tinham vivido juntos havia ficado num passado qualquer, pois nada fica para trás, sempre seremos algo disso ou à partir daquilo.

O ônibus fez seu trajeto completo três vezes sem que Pérsio olhasse além da ponta de sua caneta de tinta verde que tanto de si havia dito. Até que decidiu descer em um ponto qualquer, a fim de metabolizar sozinho todo aquele mundo que saltava à sua frente para que fosse finalmente sentido. Os pássaros gritavam, as pessoas pediam-lhe um abraço, o policial um sorriso.

Sentada num banco de praça uma mãe-menina ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, quando se tem um seio na boca, com tanta vida a lhe oferecer. Sob o banco um gato dormia um sono invejável, do qual logo despertou e se espreguiçou da maneira mais prazerosa do mundo.

Na sombra de uma árvore um casal adolescente trocava carícias e provavelmente as juras de um amor tão intenso quanto efêmero, que Pérsio sorriu sem perceber, pois carregava um tanto de amor (ainda não compartilhado) consigo.

De repente a plenitude dava as caras a Pérsio, que pensou que momentos tão intensos quanto estes, que se bastam independentemente da finitude de um mundo, seriam equivalentes ao que sente um suicida ao ajustar a corda em torno de seu pescoço. Nada mais importa.

Sentado num banco do canto da praça, Pérsio retirou novamente do bolso a caderneta e voltou a escrever em verde.

Começou tentando descrever o que via ao seu redor, mas logo caiu na solidão que sempre pareceu nortear os seus dias.

Pérsio passou grande parte dos seus vinte e sete anos buscando bastar a si próprio, pois havia lido em algum lugar que o ser humano é um ser solitário, que inevitavelmente se descobre só, e que é preciso estar preparado para isso. Mas jamais conseguiu.

Dia após dia via-se cercado por seus amigos, todos escritos nas linhas verdes anteriores. Jamais conseguiu um desprendimento, e por isso se sentia frágil para viver a inevitável solidão que lhe engoliria em alguma vereda.

Linhas verdes se seguiram, mais por vaidade que por conteúdo, até que Pérsio concluiu que na verdade seus amigos, todos eles, um a um, prepararam-no para a vida intensa que precisava ser vivida, pois jamais seria obrigado a conviver com a solidão, que esta era a sentença dos que estavam condenados a viver além do que mereciam.

E agora, ali, naquela praça onde centenas de pessoas desconhecidas passavam com pressa, rumo a destinos incertos, Pérsio não sentia pressa alguma, enquanto se lançava à deriva no fluxo do tempo, onde já não estaria só, sem se importar em incorporar o diagnóstico médico impresso em tinta preta no papel branco que trazia amassado no bolso esquerdo de sua calça azul.

E olhando uma desconhecida, que parecia esperar alguém, sentada no banco em frente ao seu, ao lado da mãe-menina que ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, apaixonou-se e escreveu em verde, enfeitando o verso do diagnóstico oncológico:

racionalmente olhando você:

não é maravilhoso que seus um-metro-e-sessenta-e-dois entrem pelos meus olhos-tão-pequenos e se agigantem dentro de mim, preenchendo cada espaço dos meus um-metro-e-oitenta-e-tantos?

mandei a racionalidade às favas quando cheguei em você.

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Sejamos Turistas

por Murilo

Há dias se viu pensando em viajar; para onde não sabia. Foi num guia de viagem, de um sebo qualquer, que encontrou o que queria. Dentre as muitas sugestões, rumos que nunca ouviu falar. Leu dicas de A a Z, como estas que vou contar.

A simpática Amanda, do litoral catarinense, é de beleza leve e graciosa. Ideal para quem procura momentos de tranquilidade, também pode surpreender com suas agitadas noites de verão. Se estiver de passagem, não deixe de se escorregar por suas dunas ou perambular por suas curvas. Se for ficar mais tempo, não hesite em alugar um chalé na beira da praia, pendurar uma rede na varanda e aproveitar a vida simples e plena que Amanda pode oferecer. Mas fique sabendo: se apaixonar é fácil e não tem volta.

A moderna Gisele sempre foi vista como uma das paisagens mais cosmopolitas do ocidente. Sempre se reinventando, ela muda comportamentos e dita tendências. A fama de caráter fechado não passa de balela; Gisele é aberta a pessoas interessantes que tenham a coragem de desbravar suas fronteiras e se aprofundar em suas peculiaridades. Para conhecê-la bem, falar inglês é fundamental, mas dominar o idioma francês é ainda melhor. Se você quer dar uma balançada nos seus dias, não deixe de visitar Gisele. Ela quer mudar o mundo, mas pode mudar a sua vida.

Frenética e exótica, Nicole é um dos destinos mais cobiçados do planeta. Nela você encontra atrações monumentais, como os famosos olhos verdes ou os distintos lábios carnudos. Sua atmosfera inebriante atrai homens de todos os lugares; já o custo da estadia não é dos mais baratos. Acostumar-se com seu ritmo inquieto não é fácil, mas pode ser estimulante. Uma semana é pouco tempo para conhecer as nuances de Nicole; portanto, se quiser visitá-la, faça grandes malas e prepare-se para muitas emoções.

Sofia é linda e cheia de história. Sem dúvida, um achado perfeito para quem tem apreço pela cultura. No inverno, é destaque nos festivais, apresentando muita dança, música e poesia. Para quem admira a gastronomia, ela é também um prato cheio, com diversas receitas típicas a ensinar. Se tiver a competência, você pode até mesmo se aventurar por suas montanhas alvas e seus vales pouco explorados. Sofia parece ter saído de um romance, e às vezes faz você pensar que está dentro de um. Venha revelar seus mistérios e ver como a felicidade pode estar mais perto do que imagina.

E havia tantas outras, que lhe abateu certa indecisão; mas foi na última página que encontrou a solução. E dizia o tal guia, seja qual for a sua escolha, o importante é que . Destinos não virão, você é quem irá.

Se planos cogitados são sonhos e planos executados são vida, parece-me que precisamos dos dois, impressos numa passagem de ida.

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Oh, o seu time campeão, sua escola na avenida

Foi bom que ela tenha morrido no começo do mês, porque aí pudemos depositar algum dinheiro numa conta de banco de um dos membros da família dela, o que pode não ter gerado conforto nenhum, mas claro que ajudou. Veja, querida, você sabe disso melhor que eu mas não custa repetir: toda ajuda nessa hora é válida, ainda que ela seja exclusivamente financeira.

O dinheiro não foi muito. Coisa em torno de R$ 300. Não pude me dar o luxo de fugir do meu orçamento mensal dessa vez (a viagem de férias e a classe média: tema pra uma outra hora menos triste), e é por isso, suponho, que fogões e geladeiras são feitos para durar pelo menos mais de um mês, assim como carros e televisões. E já que falo de suposições digo mais. Acredito que esses produtos poderiam durar mais tempo, talvez vidas inteiras, mas isso é especulação somada à uma vontade boba e pessoal. A propósito, um dos meus casais de avós gostava de falar sobre a “eternidade” do amor deles, como se existisse mesmo sentimento que resista a tudo, sem guardar relação qualquer com as conveniências da vida, ou sem que esteja influenciado pelas ondas que ela propaga e é. Nunca acreditei neles quando falavam disso, mas não costumo acreditar nas palavras de muitas pessoas. Pelas pessoas e pelas palavras, que valem menos que as pessoas e menos que dinheiro, e menos até que o conforto de sentar numa boa poltrona, ainda que você sente numa delas para ler palavras num livro ou numa revista ou num almanaque ou num site, ou para ouvir palavras numa conversa com alguém de que gosta.

O que importa é que estou sempre atento às palavras, mas estou ainda mais atento ao fato de que elas não valem muito, se é que chegam a valer alguma coisa em alguma instância da sensatez. Aliás, sensatez é uma bela palavra, não?! Não sei. Eu acho. E prefiro a palavra ao ato.

Funerais custam caro. Já viu? Sim, pois se as empresas funerárias fazem, na verdade, um dos trabalhos do diabo sobre a terra, nada mais justo que cobrar muito por isso. Não deve ser fácil viver cada hora maldita tendo que se reportar ao inferno. Cada um dos minutos deve ser difícil. Cada um dos segundos, e até os intervalos entre eles. Em alguns momentos, sempre tão fugidios quanto o vento, deve ser insuportável trabalhar nesse negócio.

Ninguém paga uma empresa funerária para cavar um buraco, tapá-lo ou para escolher flores adequadas, nem nada disso. Paga-se pelo tempo dos profissionais da obra. Poucos querem se preocupar com a morte num tempo como o nosso, tão feliz, esperançoso e tão cheio de palavras que acalentam os corações cansados e enganam os desavisados. As palavras, de novo. E outros funerais, que hão de vir e vão.

Paga-se caro nestes casos, também, por causa de métodos comerciais estranhos que algumas empresas do segmento praticam, mas isso é tema pra outra hora, durante um café, quando desconfiarei de tudo que você disser e espero que você faça o mesmo quanto às minhas palavras. Uma hora de investigação policial dedicada e cuidadosa, empreendida por policiais que tenham bons hábitos de sono e alimentação, e que estejam contentes com os próprios salários e estilos de vida deve resolver o caso das funerárias, mas nós temos muito o que dizer um ao outro sem precisar nos preocupar com esse tipo de tema, mesmo que passemos por ele por acidente em alguma altura da nossa conversa animada e ansiosa.

Quanto a ela, a morta, era isso. O que você acha? Existe mesmo outro lugar além daqui? E pode dizer o que quiser, mesmo que eu duvide.

Não vou te visitar nessa semana. Talvez nem nesse mês, na verdade, mas podemos conversar pra descobrir quando poderemos nos atualizar um sobre as atividades do outro. Inventemos um dia fatídico e feliz para nós, afinal.

Saudades de você – mas não devia admitir, acho.

Do seu (com medo da formalidade excessiva, pelo momento pesado demais pros meus ombros tão cansados de carregar o peso do mundo e das dores).

Daniel.

Marco Antonio,

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Volume

Após cinco doses cada, depois de entrarem em um táxi e passarem uma rota furada qualquer, ela se aproximou dele e, com um movimento rápido, imperceptível pelo retrovisor, deixou sua mão tão cheia quanto a vontade dele.

 

Rafael Budni.

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mel gibson

Escorre dos telhados pras paredes, inunda os vãos entre as pedras das calçadas, alaga becos distantes e avenidas movimentadas com a mesma vontade, encharca as roupas de transeuntes, faz os que ainda não saíram de casa pensarem se precisam mesmo fazê-lo, manda fechar vidros de carros, ônibus e táxis. Em fúria, abafa as vozes usando a própria e, em paz, traz a noite mais cedo quando quer.

marco antonio

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Uma possível dor no ar da escuridão de um mundo

por Rafael.

Um ano, dois meses e sete dias depois, voltei a ser picado por uma abelha. Não que eu seja um aficionado por datas e números, mas há coisas que nos marcam a uma profundidade maior do que a que desejaríamos.

Como quem vem de longe, convicta de que tem algo a dizer, a lembrar, a cobrar, ela veio e cravou seu ferrão em meu pescoço, pouco abaixo da orelha direita.

Da última vez havia sido no punho esquerdo, lembra?, naquele café, no parque, daquele café.

Lembro mais do susto que da dor. Não que não tenha doído, mas daquela tarde lembro mais da noite que vencia o dia, tingindo o horizonte com o mais-forte-alaranjado-do-mundo, as nuvens de um inominável-magenta, e o céu inteiro com milhares de tons entre o lilás e o preto que por fim tingiu tudo.

Lembro da dor que seu sorriso me causava, sabendo que sairia iluminando outros dias, me deixando em uma escuridão só minha.

Um sorriso que era uma metade insegurança e a outra tristeza, além de um quê de malícia, um sorriso que habitava não só os lábios, mas começava nos olhos, descendo calmamente pelo seu rosto e, por fim, equilibrava-se nos cantos da sua boca sem batom.

Aquele café, no parque daquele café, nunca mais existiu, e hoje eu sei que além do café havia você, e por isso o ferrão não me causava dor.

Nunca mais pude sorrir por um céu azul sem me convencer de que aquilo tudo é uma ilusão de ótica, que por trás do azul do céu, mesmo que o mais-bonito-azul-do-mundo, há uma eterna e silenciosa escuridão, dominante até o infinito.

Sempre que me convenço disso tenho vontade de gritar um grito que não me sai. É como o silêncio o engolisse por inteiro.

E agora, um ano, dois meses e sete dias depois, voltei a ser picado por uma abelha, com a mesma escuridão que nos abraça todas as noites, uma picada de abelha no pescoço, pouco abaixo da orelha direita. Uma picada que me causa uma dor maior que todas as sensações de uma vida. Uma dor que se faz valer pela ausência de algo maior ao alcance dos meus sentidos.

A partir de minha dor, reúno forças e lanço estas palavras no ar, um ano, dois meses e sete dias depois, buscando lhe atingir com meu ferrão, não para lhe causar a maior-dor-do-mundo, apenas para lembrar.

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a disputa

Odeio errar.

Não erro, pra não odiar.”,

pensou a senhora, nesse formato gráfico e com essa pontuação. Ela era agora dada a pensar em e através de versos, e cometeu ou um raciocínio de hipocrisia, ou de sátira ou ainda de completo desprendimento às picuinhas da vida, sendo esta última a hipótese mais provável, já que a ideia de desapego a agradava mais que tudo naqueles dias.

Mas quem vê de fora costuma não saber de nada”,

pensou um senhor, vizinho de porta dela, de forma alheia ao que se passava no apartamento ao lado.

 

marco antonio

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